segunda-feira, 22 de julho de 2013

O custo humano e ecológico do açúcar



Nenhuma barrica de açúcar chega à Europa isenta de sangue.

Helvétius
Durante o século XVI a Europa comprava especiarias da Índia, mercadorias da China, e roubava ouro e marfim da África. O açúcar já era conhecido há séculos, mas era uma especiaria raríssima e caríssima. Depois que os portugueses aprenderam a fabricá-lo e especialmente depois de descoberto o Brasil e da brilhante idéia de produzir açúcar aqui, essa mercadoria começou a deixar de ser um luxo de poderosos e a ser consumida por massas cada vez maiores de europeus. E como ainda era cara tratava-se de um bom negócio, certamente um excelente negócio, tanto que era disputado a tapas, ou melhor a canhoneiras, por espanhóis, portugueses, holandeses, franceses e ingleses - e, no meio do
cenário de guerra quase permanente tiroteio, índios e negros. 
Para produzir açúcar no Brasil era necessária uma força de trabalho abundante e barata. Ia ser difícil levar homens livres da Europa para trabalharem para um latifundiário no Brasil; eles estavam mais inclinados a vir em busca de um pedaço de terra para cultivar visando o enriquecimento próprio. O índio foi escravizado por um curto período, mas era difícil convencê-lo a trabalhar na fabricação de açúcar, e além do mais a Coroa Portuguesa não ganhava nada com isso.
Para sustentar a produção de açúcar foi criado o tráfico de escravos negros da África, a maior migração forçada que a História registra , ainda segundo Werneck Sodré. A Metrópole portuguesa vendia caríssimo as concessões para a exploração do tráfico negreiro, e com isso ganhava dinheiro nas duas pontas, no tráfico de açúcar e no de negros.
147 Fonte: www.roche.com.br.

148 Sodré, Nelson W. Formação da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 1944, p.110.

O tráfico tinha um desenho triangular, os capitalistas que o exploravam levavam da Europa tecidos baratos e bebidas alcoólicas para a África; lá enchiam o porão dos navios de negros que eram levados para a América como escravos; e voltavam para a Europa com os navios cheios de açúcar.
O negro africano também não se dispunha a trabalhar de bom grado para o senhor de engenho. As condições de trabalho na produção de açúcar nos tempos coloniais eram duríssimas. Vejamos o testemunho do cronista francês Pierre Morreau, que esteve no Brasil entre 1646 e 1648: Se alguém deixasse de executar no tempo prescrito o que havia sido determinado, era amarrado e garroteado, na presença de todos os outros escravos reunidos, e o feitor ordenava ao mais forte e vigoroso que desse, sem interrupção, no faltoso duzentas a trezentas chicotadas, desde a planta dos pés até a cabeça, de sorte que o sangue escorria de todas as partes; a pele toda rasgada de golpes era untada com vinagre e sal, sem que ousassem gritar ou gemer, sob pena de receber o dobro. Algumas vezes, segundo a
que uma luva, eram reenviados ao serviço .149 Diante de tais argumentos o negro africano gravidade da falta, esse castigo, ou melhor essa tortura, era repetida dois ou três dias consecutivos. Ao sair dali eram presos em lugar escuro e, no dia seguinte, mais submissos 
foi persuadido a trabalhar no fabrico de açúcar.

Desde que eram capturados no meio do mato, por seus próprios irmãos de cor, lá na África, e trocados por bugigangas, os negros eram jogados num navio, não à toa chamado de tumbeiro, que saía da África lotado de homens e chegava ao Brasil com 30 ou 40% deles a menos - morriam na viagem, de fome ou maus tratos. No canavial trabalhavam como burros de carga 14 horas por dia. Sua vida útil variava de sete a dez anos. 

A produção de açúcar exigia a plantação de extensos canaviais. Como disse  as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo animais e até os índios.  O Gilberto Freyre, o canavial entrou aqui como um conquistador em terra inimiga: matandocanavial destruiu 3/ 4 partes da Mata Atlântica nordestina pela queimada. Ainda nas palavras de nosso sociólogo poeta, a fogo é que foram se   abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o canavial civilizador mas ao mesmo tempo devastador .
A monocultura da cana destruiu, em grande parte, a diversidade biológica da Zona da Mata. Com a destruição das matas para a cana dominar sozinha, o roxo dessa terra nua (crua), a natureza do nordeste - a vida toda deixou de ser um todo harmonioso para se desenvolverem relações de extrema ou exagerada subordinação: de umas pessoas a outras,de umas plantas a outras, de uns animais a outros; da massa inteira da vegetação à canaimperial e todo-poderosa; de toda a variedade da vida humana e animal ao pequeno grupode homens brancos , conclui Gilberto Freyre.
Ao custo dessa matança de índios, da destruição de florestas, da biodiversidade e do solo, do  desequilíbrio ecológico e meteorológico, e do fato de milhões de negros terem sido arrancados de sua terra natal para serem queimados como carvão nos fornos dos engenhos de açúcar, os portugueses produziram muito açúcar que ia parar na Europa.
revendiam-no para o resto da Europa. Os holandeses, por ocasião da União Ibérica, com Os portugas produziam o açúcar bruto e capitalistas holandeses refinavam-no emedo de perderem para a Espanha sua fonte de matéria-prima, decidiram invadir e tomar na marra o filé mignon da zona açucareira do Brasil, Pernambuco e adjacências. Depois essa região voltou para as mãos de Portugal mediante novas e memoráveis guerras.

149 Apud Avancine, Elza G. Doce inferno. São Paulo: Atual, 1991, p. 51.

150 Freyre, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olimpyo, 1937, p. 95.

Isso tudo aconteceu no contexto do latifúndio, da escravidão, da monocultura de
cana e do engenho de açúcar.
Fecha o pano e vamos dar um pulo para outro cenário, poucos séculos depois. O latifúndio continuou o mesmo, o Brasil continua sendo o país em que se encontram as maiores propriedades do planeta, extensões de terra nas quais cabem países europeus. Não à toa é no Brasil que existe também o maior movimento de trabalhadores sem terra do mundo, agricultores que não dispõem de uma nesga de terra para plantar, num país de dimensões continentais.
A monocultura, em linhas gerais, continua. Talvez seja melhor falar em oligocultura, posto que outras culturas entraram na concorrência: laranja, café e soja. O Brasil tem vocação para ser o grande celeiro do mundo. Ainda hoje é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar. O trabalho não é mais escravo desde 1888, embora de vez em quando apareçam na imprensa denúncias da prática da velha e  humilhante forma de escravidão por dívidas ou em troca de um prato de comida. Nas modernas  usinas de açúcar as condições de trabalho não mudaram muito em relação ao antigo engenho colonial, tanto que o ambiente do engenho o padre Vieira o chamou de doce inferno e os trabalhadores da usina chamam de vapor do diabo a neblina quente que impregna a fábrica e que eles respiram. E lá fora no canavial ainda existe o trabalhador temporário, o bóia-fria, alusão à marmita que ele não tem o direito de esquentar para comer.

A destruição da natureza continua, lixiviação do solo, devastação de matas ciliares, contaminação de águas, solo e alimentos. As grandes extensões de plantação de cana continuam a fazer o mesmo mal ao ecossistema que sempre fizeram. O capim gerador de açúcar e álcool continua a se expandir substituindo culturas de alimentos. E agora com a ajuda da ciência estão pretendendo transformar a região do cerrado brasileiro num imenso canavial de cana transgênica.
bilhões de litros de vinhoto151, quase 25 milhões de toneladas de açúcar, o Brasil sacrifica
Para produzir mais de 15 bilhões de litros de álcool e conseqüentes quase 200

quase 5 milhões de hectares de terra fértil e gera uma cordilheira de bagaço de cana. São
perto de 500 milhões de toneladas de cana que viram bagaço. Agora mesmo a ditadura do
açúcar está tentando viabilizar uma indústria poluente de geração de energia a partir da
queima desse bagaço. Espero que pelo menos o Partido Verde ponha a boca no trombone.
E estava preparando-se para avançar sobre o Pantanal matogrossense. Queria instalar 23
usinas de açúcar e álcool no Planalto Matogrossense. Essa intentona dos fabricantes de
açúcar colocou em rota de choque o governador local Zeca do PT e a Ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva.
A agroindústria da cana de açúcar já está instalada no Mato Grosso do Sul. O
problema é que os usineiros queriam ampliar seus negócios e leis estaduais estavam
obstaculizando seus planos. Zeca do PT então enviou à Assembléia Legislativa um pojeto
de lei que facilitaria a vida dos usineiros. Marina Silva, sabendo disso, fez oposição.
Zeca do PT tentou desqualificar a ministra acusando-a de ter um ponto de vista
amazônico e de não conhecer a realidade do Pantanal. Ora, amazônico significa amplo,
sem querer Zeca elogiou a ministra. Já ele revelou-se um pangaré de antolhos no que diz
respeito à ecologia.
Recentemente uma usina despejou um caldo num rio matando os peixes. Alguém da usina disse

que era melaço, mas provavelmente era vinhoto, resíduo poluente. Para cada litro de álcool
produzido restam 15 litros desse produto.
Do altiplano, onde seriam instaladas as usinas, partem importantes afluentes dos
rios Paraná e Paraguai. Para cada litro de álcool produzido sobram uns 15 litros de um
subproduto poluente: o vinhoto. Sem contar os herbicidas, pesticidas e fertilizantes
utilizados nos canaviais. Conhecendo a consciência ecológica do agronegócio brasileiro, o
destino desse material poluente seriam os rios. Seria o começo do fim do Pantanal
Matogrossense.
Diante do poderoso grupo de pressão das indústrias de açúcar e do fato de que
Zeca do PT conta com a maioria dos deputados, a violência contra o Pantanal parecia
líquida e certa. Para barrar esse processo o militante ecológico, Francisco Anselmo Gomes
de Barros, conhecido como Franselmo, ateou fogo ao próprio corpo durante manifestação
popular de protesto contra a instalação das usinas, na cidade de Campo Grande, em 13 de
novembro de 2005.
Graças a esse gesto extremo o projeto da ditadura do açúcar foi arquivado.
Franselmo imolou a própria vida para salvar a natureza. Nas cartas que deixou ele dizia:
Hoje somos passados para trás por interesses de maus políticos, maus empresários e
PhDs de aluguel. Em termos de Brasil, estamos vendo o barco afundar e ninguém diz
nada . Franselmo deixou mulher e uma filha.
Este livro é sobre açúcar enquanto componente da dieta. Num primeiro
momento a luta é para impedir que o açúcar vá parar na barriga das pessoas. Mais adiante
talvez seja o caso de se extender a luta contra a idéia do álcool como substituto do
petróleo. Porque diante disso tudo fica a pergunta: de um ponto de vista humanoexistencial
vale a pena tanto sofrimento, tanta destruição da natureza se arrastando já há
séculos? Se fosse para alimentar a humanidade, estaria justificado. Mas para alimentar o
tanque de combustível de automóveis particulares, para causar as mais vergonhosas
epidemias da humanidade, e encher de dinheiro os cofres dos traficantes de açúcar, é um
pouco demais... um pouço demais... um pouco demais.

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